Eduardo Lourenço – Amigo dos Poetas

​​​​​​​Eduardo Lourenço – Amigo dos Poetas – morre aos 97 anos​​​​​​​ 
Texto de Paola Poma1, em 01.12.2020.​​​​​​​

Eduardo Lourenço
foto: Fernando Ribeiro

​​​​​​​Portugal hoje está mais triste. E os brasileiros também. A morte de Eduardo Lourenço nos deixa intelectualmente mais pobres. Poucos sabem que este ensaísta, crítico literário, filósofo também se dedicou a pensar o Brasil. No final da década de 1950, aos 35 anos, foi convidado para lecionar na Universidade Federal da Bahia. Neste período, não apenas vivenciou um pouco do “país do futuro” – quando o mito ainda parecia possível –, como pode conviver (e criticar) com nomes da envergadura intelectual de Gilberto Freyre, Jorge Amado e Glauber Rocha, entre outros.
Essa experiência resultou em ensaios notáveis: "O cinema novo e a mitologia cultural brasileira" (1967), "Deus e o Diabo na terra do sol – um filme excepcional" (1967), "Do Brasil como mito do mundo" (2001). Alguns deles foram reunidos em Do Brasil: fascínio e miragem (2015), livro organizado pela Prof.ª Maria de Lourdes Soares contendo ensaios, entrevistas, resenhas, produções variadas relativas ao país. E está previsto um outro volume, Tempo Brasileiro, que sairá dentro do projeto de sua Obra Completa, em andamento pela Fundação Calouste Gulbenkian. Nomear tais obras é dar a ver ao leitor brasileiro que o ensaísta não só pensou nosso país como soube ver, com um olhar crítico, a nossa miséria:
“por mais realista e crítica que seja a literatura brasileira dos anos 30 e 40 – Jorge Amado, Lins do Rego, Amando Fontes, Graciliano Ramos – a preocupação pelo Brasil que ela reflete raramente se traduz em visão trágica da existência, embora descritivamente, integre a tragédia objetiva, o escândalo humano e social da miséria sem nome do nordestino, do sertanejo, do citadino pobre. Um destino realmente trágico supõe e implica uma máxima consciência (ou de consciencialização) dos obstáculos e das forças que reduzem o indivíduo ou a coletividade ao impasse fatal.”
Talvez esteja certo, pois parece que a falta de consciência nos colocou nas mãos de um reacionarismo radical e ignorante. Impasse fatal?

Eduardo Lourenço
foto: Fernando Ribeiro

Em 2018, tive a rara oportunidade de entrevistar Eduardo Lourenço2, juntamente com o Prof. Fernando Ribeiro da Universidade Nova de Lisboa. Confesso que estar na sua presença, no seu gabinete na Fundação Calouste Gulbenkian me deixou praticamente muda. Generoso, simpático e muito atencioso nos concedeu quase três horas de entrevista.
Mas foi durante um almoço - que se repetiu outras duas vezes - que pude comprovar a genialidade intrínseca ao homem. Primeiro o deslumbramento com o Tejo e o medo confesso de andar de barcos. Depois, quando estávamos saindo do restaurante - e como todo restaurante necessita de uma televisão na sua arquitetura do século XXI, ainda mais em tempos de Copa do Mundo - ele olhou para tela e me disse: “seu país está jogando” (era o replay do jogo Brasil e Sérvia). A partir de então, começou a pensar em voz alta e, dando tratos à bola, passou a associar os dois lados do campo ao funcionamento da guerra, com suas estratégias, motivações, ataques e defesas. O futebol virou a história dos homens.
No caminho de volta à Fundação Gulbenkian, começou a brincar e rir com os nomes das ruas e lugares de Lisboa, em especial com o famoso Cemitério dos Prazeres. Para além da explicação relativa à origem do nome, havia naquele riso um misto de indignação e ironia.

Eduardo Lourenço
foto: Vitorino Coragem

O olhar de Eduardo Lourenço passeia pelas coisas mais cotidianas ampliando a nossa visão de mundo. A beleza do rio, o risco do jogo, as pequenas ruas de Lisboa se transformam sutilmente em temas profundos: o medo, a guerra, a morte. O ensaísta erudito e o homem comum caminham lado a lado. Por isso, ao falar sobre poesia afirme que “o mais simples, em matéria de acesso à poesia, ainda é dizê-la como se fosse ela que se disse, ao rés da fala, prosaicamente, como o fazia Manuel Bandeira”.
Talvez a poesia lhe tenha devolvido este olhar penetrado pelo mundo, por todos os mundos. Aprendi com ele que quanto “mais densa é a noite que nos cerca mais necessário e irrepressível o canto com que a recusamos.”
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1. Paola Poma - docente da área de Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP; obteve o doutoramento com a tese intitulada O Mito Fernando Pessoa: de autor a personagem (DLCV/USP, 2003) e organizou o livro Sophia Singular Plural (Editora 7 Letras, 2019). É vice-diretora do CELP.
2. Entrevistado no dia 5 de julho de 2018 - referente ao lançamento de Fernando Pessoa Revisitado, Brasil/Editora Tinta de China - realizada pela autora do presente texto e pelo Professor Doutor Fernando Ribeiro da Universidade Nova de Lisboa na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, para a Revista Desassossego. Título da entrevista: EDUARDO LOURENÇO: AMIGO DOS POETAS. Disponível em: http://e.usp.br/gw2.