Depoimento de Jiro Takahashi*
Publicado originalmente em seu perfil do Facebook

Hoje, 16 de setembro de 2021. Há exatos 30 anos, perdemos um dos maiores escritores brasileiros, Murilo Rubião, o pioneiro da literatura fantástica. Grande escritor, grande amigo, grande mestre na edição e na vida. Cinco anos de sua morte, escrevi um pequeno texto sobre ele. Só peço desculpas por ser extenso demais. Sei que ele preferia tudo mais "enxuto". Mas, generoso, me perdoaria por isso.


MURILO RUBIÃO, MÁGICO DAS PALAVRAS

Cena um

No quarto de um apartamento em Belo Horizonte, uma invasão de coelhos, pássaros, figuras estranhas e fogos de artifício. Todos debaixo de um travesseiro, dentro de um volume de contos. Em setembro de 1947, era publicado O ex-mágico.

Coincidentemente, no ano em que nasci, Murilo Rubião publicava seu primeiro livro. Quando ele recebeu seu primeiro exemplar de O ex-mágico, ele disse que foi dormir com ele debaixo de seu travesseiro. Todas as suas personagens fantásticas reuniam-se, de certa forma, onde tinham nascido: dos sonhos de um contista que escreveu antes de seu tempo. É notável que o livro tenha sido publicado por uma quase desconhecida Editora Universal, do Rio de Janeiro, que tinha no ano anterior lançado simplesmente o livro Sagarana, de Guimarães Rosa. Apesar de a editora não ter permanecido, como editor vou admirar para sempre a sensibilidade desse editor, com ousadia de descobrir e lançar Guimarães Rosa e Murilo Rubião.

No final dos anos 1960, eu estudava Letras na Universidade de São Paulo, época em que acabava de chegar às livrarias o monumental Cem anos de solidão, de García Marquez. Na esteira desse sucesso, nos entusiasmávamos com a chegada de Borges, Cortázar, Vargas Llosa e muitos outros escritores latino-americanos. Exatamente nessa época, três professores — Jorge Schwartz, Davi Arrigucci Jr. e Antonio Candido — falavam muito do caráter precursor de Murilo Rubião, reconhecendo-lhe o talento e a originalidade. Estávamos em 1974. Tomei emprestado um volume de Os dragões e outros contos. Acabei de ler, animadíssimo, consegui seu telefone, liguei imediatamente para ele. Como eu iniciava uma coleção chamada Nosso Tempo, na Editora Ática, propus ao Murilo inaugurar a coleção com seus contos em uma edição que seria ilustrada pelo artista gráfico Elifas Andreato e com uma grande tiragem. Murilo ficou meio desconcertado com a tiragem e pediu que eu fosse conversar com ele em Belo Horizonte.

Fui encontrá-lo na redação do Suplemento Literário de Minas Gerais. Naturalmente ele aceitava as condições que propunha a ele, mas ficou horas tentando me demover da idéia de fazer uma grande tiragem. Ela achava que uma edição de, no máximo, 3 mil exemplares já seria mais do que ele esperaria em termos de público. Prometi que repensaria os números e voltei a São Paulo, exultante com o contrato em mãos.

Na Ática, não atendemos a prudência recomendada por Murilo e fizemos a tiragem de O pirotécnico Zacarias, com um zero a mais na sua recomendação e publicamos 30 mil exemplares, que se esgotaram em seis meses.

Cena dois

No interior de um apartamento de Belo Horizonte, um homem se dirige à escrivaninha. Pega uma caneta e um caderno de anotações. Apanha na estante um velho volume de Quincas Borba. Atento, com um sorriso enigmático, copia cada parágrafo, cada frase, cada vírgula do livro em seu caderno.

Esse ritual se repetiu por anos nesse apartamento habitado por Murilo Rubião. Por muitos anos, até hoje, essa cena não me sai da cabeça, desde o dia em que ele me contou sobre uma das técnicas que ele usava para aperfeiçoar sua escrita. Diante da minha cara de espanto ele me disse que escrever era também uma questão de ritmo. Por isso, praticava o exercício diário de copiar os livros de um dos autores que mais admirava — Machado de Assis.

Com essa paciência de causar inveja a um monge copista, Murilo parecia nunca ter pressa em publicar. Tinha verdadeira obsessão por reescrever seus contos. Na edição de seus contos, quantas vezes tivemos de refazer a composição do livro porque ele resolvia mudar o ponto de vista do narrador em um dos contos! Um dia ele me contou que, quando foi servir na Embaixada do Brasil na Espanha, aproveitaria para escrever ou reescrever muitos contos. Ao final de quatro anos, quando retornou, trazia apenas um conto escrito e reescrito dezenas de vezes — o hoje antológico “Teleco, o coelhinho”. Nesse ritmo, não espanta o fato de em mais de 40 anos de literatura só ter produzido algumas dezenas de contos. Mas nenhum de seus contos demorou tanto para ser concluído como “O convidado” — 26 anos, de acordo com o testemunho de nosso amigo comum, Paulo Mendes Campos.

As constantes reescrituras que ele fazia em seus contos sempre me pareceram uma arte de um grande editor que ele foi. Ele criava, escrevia e editava o texto de cada um de seus contos. No seu ritmo. Por isso, evitar a ansiedade e zelar pelo texto são as lições que procuro seguir como editor, como aprendiz de Murilo Rubião.

Cena três

No interior de um apartamento em Belo Horizonte, um homem se dirige à janela. Examina a noite. Dia 16 de setembro de 1991. Acompanhado por algumas personagens, olha as metamorfoses da paisagem da janela. As coisas parecem perder a cor. Murilo, como Zacarias, decide: sem cor jamais quis viver. Acho que foi sua última mágica.


*Jiro Takahashi - É mestre em Linguística - Semiótica - pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP (2010) Universidade de São Paulo (conceito CAPES 7). É graduado em em Letras pela Universidade de São Paulo (1975) e licenciado em Letras pela Universidade de São Paulo (1976).Professor universitário de língua, linguística e literatura, lecionou na FMU, UNIBERO, Faculdade Paulista de Artes, UNIFECAP-São Paulo, Universidade Anhanguera-Unibero e Casa Educação/Instituto Singularidades. Atualmente é docente do Centro Universitário FAM e, com contrato temporário, da Casa Educação/Instituto Singularidades. Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase em Semiótica, atuando principalmente nos seguintes temas: literaturas brasileira, portuguesa e africana, análise do discurso, autores contemporâneos, tradução e literatura contemporânea, revisão e preparação de textos e disciplinas da área editorial. Tem 50 anos de atuação em direção editorial nas editoras Ática - foi criador de várias coleções literárias, como a Vaga-lume, a Para Gostar de Ler e a Nosso Tempo -, Nova Fronteira, Editora do Brasil, Grupo Ediouro e Grupo Rocco. Atualmente é coordenador literário de Zapt Editora e diretor executivo da Editora Nova Aguilar, respondendo pela edição de Obras Completas de clássicos nacionais e internacionais em papel bíblia, com encadernação especial. Leia também sobre Jiro em: <os editores>.